A vida do som e o som da vida

Canto é excelente. Mas, antes de tocar ou cantar, a criança deve ouvir. Ouvir boas músicas

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
21 Junho 2017 | 03h00

"Atenção pais e educadores: música não é um deleite ocioso de aristocratas. Música é parte da formação da cidadania e elemento estruturante do pensamento. Aprender sobre notas e melodias não é detalhe ou firula de formação. Sem música não é possível construir pessoas equilibradas e inteligentes. Alfabetizou seu filho nas letras? Fundamental. Parabéns! Falta alfabetizá-lo em duas linguagens extraordinárias: a musical e a artística. Ler letras é parte das habilidades essenciais para existir no mundo. Ler sons e imagens constitui outras facetas do equilíbrio do homem pleno. 

Há famílias de estilo dos Von Trapp da 'Noviça Rebelde' ('The Sound of Music'). Nasceram cantando e tocando. O filme dá uma resposta a uma questão importante: como começar a educação musical de alguém? A doce Maria toca ao violão a música para ensinar notas e alegria. Cada nota é associada a uma ideia boa. Acima de tudo, o começo deve ser a sedução da alegria. 

Qual instrumento? Difícil responder. Flauta doce é boa para iniciação musical. Canto é excelente. Mas, antes de tocar ou cantar, a criança deve ouvir. Ouvir boas músicas com os pais. O lúdico atrai. O 'Carnaval dos Animais', de Camille Saint-Saëns, ajuda muito.

Colocar a música para a criança e pedir que ela adivinhe qual animal está sendo descrito. Sinestesia pura! Oferecer imagens de animais e pedir que a criança encontre o cisne, o leão, o elefante, os fósseis enquanto ouve. Um pai, mãe ou educador dedicando tempo a uma criança será uma lição inesquecível. Funciona também com o 'Trenzinho Caipira' de Villa-Lobos. Melodias fáceis e marcantes como as de Mozart são bons começos. 

Até aqui citei música erudita. Seria um erro supor que a educação musical só tenha esse recorte. Música existe em planos muito mais amplos. Cantigas de roda seduzem crianças. Nossa MPB está repleta de criações para seduzir crianças e jovens. O samba, com seu compasso marcado, traz um pouco do ritmo do coração ao nosso ouvido, o primeiro som que ouvimos ainda no útero materno. 

Temos poucas ofertas, mas um concerto didático para crianças é um privilégio imperdível. Se alguém explica ao público como funciona cada instrumento, como tocam individualmente e como dialogam em conjunto, verá olhos brilhantes acompanhando a explicação. 

Aprender música estimula a concentração. No início, alguns minutos e, pouco a pouco, aumentando o tempo de estudo. Nosso crescente déficit de atenção (estimulado pela tecnologia) pode ser atenuado com a música. Atribuo grande parte da minha capacidade de concentração na leitura aos anos de piano. Tocar uma invenção a três vozes de Bach, marcando cada nova melodia e sua entrada, mudou minha maneira de perceber um texto também. Sem Bach não conseguiria entender padre Vieira. 

Aprender música estimula a combinação de muitas coisas entre os dois hemisférios do cérebro. Música implica matemática e pensamento lógico de compasso. Música estimula concentração. Tocar algo traduz emoção e sensibilidade. Para executar uma partitura demanda-se coordenação motora envolvendo mão esquerda e direita, olhar, movimentos de braço e, dependendo do instrumento, boca e pernas. O corpo fala com o instrumento, o cérebro se envolve, a consciência dança e você se alegra e se expressa. A música transforma. 

Multiplicar as fontes garante uma chance de influência. Caixinhas de música hipnotizam crianças. Escutar junto reforça o aprendizado. Quando possível, ter instrumentos musicais em casa. Levar a concertos. Cantar muito. Deixar claro que há músicas tristes, alegres, dançantes, selvagens, elegíacas, sensuais: a música está em todos os matizes da alma humana. Música para rir e para chorar, música para celebrar e para se recolher. Sons que me abrem para o mundo e, por vezes, música que impede que eu fique devassado pelos ruídos excessivos dos outros. Podemos estar com o carro da vida veloz ou lento, as notas sempre asfaltarão a estrada. 

A diferença entre remédio e veneno está na dose. Velho e fundamental preceito médico. Leve uma criança a uma ópera de Wagner em alemão por cinco horas com uma valquíria de capacete com chifres cavalgando e você terá estimulado um musical-hater infantil. Você conhece seu filho ou seu aluno. Quer introduzir ópera? Uma ária explicada previamente e curta pode ser uma chance. Que tal o belíssimo coro do 'Va Pensiero' da ópera 'Nabuco', de Verdi? Fala de saudade e de vontade de voltar para casa. Mais vibrante? Indico o canto cheio de ódio da Rainha da Noite na 'Flauta Mágica', de Mozart (Der Hölle Rache). Romântico e lúdico? Que tal cenas do 'Quebra-Nozes' de Tchaikovsky? Cinco minutos, sem peso formal de aula, alegres e analisando o efeito. Os olhos da criança dirão se é hora de mudar, adensar ou tornar mais leve o remédio.

Mostre os estilos variados. Não trabalhe com preconceito musical. Poucas coisas são tão vibrantes como uma bateria de escola de samba entrando na avenida. A voz de Elis Regina comove até as pedras. O coro final da Nona Sinfonia de Beethoven é de parar o planeta. Um venerando senhor marcando o compasso numa caixinha de fósforos, como um dia vi na Lapa, no Rio de Janeiro, é algo hipnótico. O mundo é cheio de “som e de fúria”. Privar seu filho disso tudo é condená-lo a uma surdez estranha e a uma deficiência deliberada. Ele precisa ouvir para viver mais e ser feliz! Boa semana para todos!"

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